Pular para o conteúdo principal

Processo de demarcação de terras equivocado cria mais problemas sociais do que resolve

/ FUNDIÁRIO

Eduardo Corrêa Riedel é homem do agronegócio no Mato Grosso do Sul e preside um grupo que se destaca no setor pela gestão de pessoas e eficiência na produção pecuária. A atuação constante junto a entidades representativas da classe alçaram-no à vice-presidência da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), onde é defensor dos direitos do produtor nas questões de demarcações de terras e da necessidade de mudar a competência da FUNAI. 

ABCZ: Qual é o cenário de demarcações de terras indígenas hoje no Brasil?

Eduardo Riedel: O processo como um todo é complexo e o grande questionamento que o setor faz é sobre o trâmite da identificação e da demarcação de uma área tradicionalmente ocupada, possivelmente dita indígena, feito pela FUNAI. A constituição, lá em 1988,  determinou prazo de 5 anos para regularizar todas as reservas dessas comunidades indígenas, mas isso não foi feito à época. Agora, de 5 anos para cá, a FUNAI deslanchou um processo maciço de demarcação de áreas que na verdade eram terras da União. O processo é uma ação unilateral baseada apenas em estudos antropológicos. O produtor, seja quem for, tenha ele recebido a terra em programas do Governo ou comprado de boa fé e esteja ele trabalhando aquele solo há décadas, acaba expropriado e lesado em seus direitos.

Pela lei, o produtor é expulso da área e talvez receba indenização só pela benfeitoria, mas nunca pela propriedade, pela terra nua. Foi o que aconteceu na grande maioria dessas áreas que a FUNAI tem demarcado, não só aqui no MS, mas no PR, no RS e na BA.

ABCZ: Qual é a explicação para um processo tão equivocado e que gera mais problemas sociais do que soluciona?

ER: É porque as demarcações são verdadeiras fábricas de produção de terras tradicionalmente ocupadas. A discussão foi para o Supremo Tribunal Federal, desde o caso Raposa Serra do Sol. A FUNAI demarca o que bem entende do ponto de vista de ocupação tradicional, depois vai para homologação pela Presidência da República e desapropriação. Áreas indígenas são aquelas que as comunidades ocupavam no momento em que foi feita a Constituição e não as que ocuparam no passado, desde o descobrimento do Brasil. É um absurdo, uma excrescência, não da legislação, mas da interpretação, no nosso ponto de vista, muito maldosa da FUNAI e ainda respaldada por Ministério da Justiça e por Governo Federal, que promoveu esse caos, esse conflito todo que o país está vivendo.

ABCZ: Como a CNA está agindo para reestabelecer o direito dos produtores?

ER: A CNA, juntamente com as federações nos Estados onde há problema, tem feito uma verdadeira empreitada, seja na justiça, seja na política, seja no âmbito social, mobilização para poder mudar toda essa sistemática. O Congresso Nacional comprou a discussão ao instalar a PEC 215, que no nosso ponto de vista é extremamente importante, porque gera a capacidade de rediscutir todo esse procedimento e as ações na justiça que estão chegando ao Supremo Tribunal Federal, que se manifestou, no caso Raposa Serra do Sol, colocando 19 condicionantes para essa questão de demarcação e uso dessas áreas, o que muda completamente a realidade com a qual a FUNAI vinha trabalhando. É o que nós esperamos para não ter mais esse tipo de absurdo, que é ficar tendo que enfrentar conflito o tempo todo entre produtores e comunidades, que são, na maioria das vezes, manipuladas pela FUNAI, pelo CIMI e por outras ONGs de interesse muito mais no conflito do que na solução.

ABCZ: Tirar a terra de um produtor e só passar para uma comunidade indígena soluciona o problema deles?

ER: É importante lembrar que se tem uma política indigenista no Brasil fora da realidade, que trata esses povos como eles foram estabelecidos no imaginário da sociedade brasileira, como a figura do bom selvagem, do índio da floresta amazônica, isolado, vivendo de caça e pesca, e não é nada disso. Nós temos comunidades indígenas aqui no Mato Grosso do Sul que são os bairros da cidade e isso é um problema social, não um problema fundiário. Para elas faltam todo e qualquer apoio na área de educação e da saúde. Há altos índices de criminalidade entre essas comunidades que estão na periferia de uma cidade grande, inclusive dominadas pelo tráfico.

ABCZ: É isso que vocês chamam de demarcação fraudulenta?

ER: Quando o país tem instalado um processo para resolver uma situação social que extermina  direito de propriedade e determina que a propriedade não é mais do produtor ou do proprietário, em muitos casos com título de 100 anos, ratificado mais de uma vez, você simplesmente põe em cheque um dos princípios básicos da democracia. Você muda o problema social de lugar e cria outros. O erro maior é deixar essas comunidades chegarem ao ponto de degradação social que chegaram e tentar corrigir isso com demarcação absolutamente sem sentido do ponto de vista de tamanho, dimensão e área. Aí o discurso é todo montado m cima de conceitos de antropologia, citando a relação do índio com a terra, com a caça, mas isso quase não existe mais, os tempos mudaram.

ABCZ: A CNA solicita mudanças na competência da FUNAI, em que pé está essa reivindicação?

ER: Em processo, o Ministério da Justiça apresentou uma minuta que reformula o procedimento pelo qual a FUNAI exerce a conduta da demarcação. Essa minuta não foi publicada ainda, mas existe um rascunho que nos foi apresentado e estamos discutindo com o Ministério. No nosso entendimento a minuta apresentada não consegue resolver os principais problemas do processo de demarcação. O próprio Ministério da Justiça está buscando uma nova alternativa. Outra questão é a definição do Supremo quanto à publicação do acordo que determina todo esse procedimento e da portaria 303 da Advocacia Geral da União, da AGU, que reafirma 19 pontos importantes. A partir do momento que for publicada, no nosso entendimento, imediatamente ela passa a vigorar. E, vigorando essa portaria da AGU, é clara toda essa situação que nós comentamos, de não permitir expansão de áreas indígenas, de respeitar esse direito de propriedade, enfim, mudando completamente esse cenário. Então tem uma portaria do Ministério da Justiça que regulamenta o processo de demarcação, tem uma portaria da AGU que está suspensa enquanto o acordo não é publicado e a própria decisão do Supremo que irá publicar esse acordo.

ABCZ: E a CNA tem pressionado para acelerar o trâmite?

ER: A CNA tem trabalhado muito no âmbito político e jurídico. Ao longo de todo esse processo, mantivemos um diálogo estreito com o STF, com a AGU, com o Congresso. Esse é um trabalho político e jurídico e a senadora Kátia Abreu está pessoalmente envolvida na questão. Ela se preocupa exatamente com a agressão à democracia. No Congresso Nacional toda essa discussão da PEC 215 é reflexo de um trabalho muito forte da CNA.

ABCZ: Há equipes de observadores da CNA em áreas de conflito. Qual a importância da presença no local?

ER: A primeira coisa importante é essa, a CNA não se acomoda dentro dos gabinetes, ela está no campo, ela tem uma estrutura de capilaridade enorme com as federações, com os sindicatos, com os nossos técnicos e as próprias lideranças. Frequentemente estamos andando nessas áreas de conflito, participando das discussões e isso é fundamental para entender cada um desses problemas que são distintos. Você tem problema da região norte do Mato Grosso até o Rio Grande do Sul. É importante que entendamos, a fundo, cada uma dessas situações para poder compilar. Ir à campo é fundamental para que tenhamos, com fidelidade, a visão das situações que estão ocorrendo em determinadas localidades, para ter argumentos adequados nas discussões.

ABCZ: Quais são as orientações aos produtores que tiveram terras demarcadas e estão em regiões onde há conflitos?

ER: Cada produtor tem o direito de defender a sua propriedade e ele define a respeito desse direito que lhe compete no momento em que é ameaçado, em que é invadido. A gente sempre atua também pedindo celeridade/serenidade à justiça e às instituições que detém o poder de polícia em situações de reintegração de posse ou quando é preciso interferir em áreas que estejam em conflito. Enfim, em todas essas ações as instituições e produtores devem estar juntos no sentido de buscar a melhor solução e pacífica.

ABCZ: A imagem do bom selvagem, bem como a do caipira da roça, não é real e nem atual, mas a imagem da violência no campo parece mais nociva. Quem perde com tudo isso?

ER: Quem perde é a sociedade brasileira, pois todas as regras e os conceitos vinculados à uma democracia forte que são colocados em xeque. Um país que não respeita um título cartorial e um direito de propriedade é colocado em xeque. Um país que permite que comunidades indígenas fiquem degradadas do jeito que estão é colocado em xeque. Então quem perde é o país não é só o produtor rural, não é só a comunidade indígena, é o desenvolvimento do país.

ABCZ: Ouvimos e vimos muitas injustiças nesses processos. O senhor também é produtor. Algum caso deixou o senhor mais sensibilizado?

ER: Nós andamos nos conflitos e vemos tanto absurdo. Um exemplo que me marcou muito foi de uma senhora de um assentamento de Douradina, aqui no Mato Grosso do Sul. Ela está na propriedade desde 1954, quando Getúlio Vargas fundou o assentamento rural. Ali tem 9 mil hectares, 300 produtores de 30 hectares. A FUNAI demarcou todo esse assentamento. E

eu fui lá, entrei na casa dessa senhora de 80 e poucos anos, que foi uma colonizadora da região a pedido do governo. Os filhos da mulher, com 50, 60 anos também são agricultores, trabalham no sítio até hoje e estavam lá. Ela me olhava com um papelzinho nas mãos e falava assim: “Moço, quer dizer então que não valeu nada?” O que eu poderia falar para essa senhora nesse momento? Ela foi chamada para colonizar uma gleba que Getúlio Vargas instituiu pelo Governo Federal, ela tem o título da propriedade dela e hoje ela está sendo expulsa da área dela sem indenização. Você quase desacredita do país numa hora dessas, mas respira e busca forças para poder trabalhar em cima de corrigir essas situações.


Fonte: Revista ABCZ