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SOBRE A PEC DA DEMARCAÇÃO

/ FUNDIÁRIO
Sobre a PEC da Demarcação
10/02/2014
 

 

O país vive uma nova realidade. A sociedade brasileira, o povo e a nação transformaram-se. Outros quereres e novos valores surgiram. Entre vários padrões culturais, cada agrupamento de pessoas se encorajou a clamar por uma nova ordem. Aspiram que o Estado lhes atenda.

 

                            Daí que a variedade das relações entre homes ampliaram-se. Umas já receberam a tutela do Estado, por lei ou por decisão judicial. Outras, não. Para aquelas, já se pode afirmar que se tratam de relações jurídicas submetidas ao império da coerção estatal, o que não se pode dizer das últimas.

 

                            Todos querem limites, e no mundo civilizado o limite é a lei e a atuação do Estado.

 

                            Os conflitos de interesses entre diferentes espécies de pessoas estão aí, expostos à carne viva. Sob o discurso do “passe livre” e da redução das tarifas, jovens nação afora foram para as ruas reivindicar. O “rolezinho”, por exemplo, é um fato social de cuja regulação o Estado provavelmente não poderá escapar. Trata-se de normatizar uma realidade fática que já existe.

 

                            Antes disso, porém, muito antes, homens do campo, da agricultura e da pecuária, já se relacionavam com índios ou tribos indígenas. Dizem os mais experientes que esta relação era harmônica, até surgir alguns “estudiosos” a procurar pêlo em casca de ovo.

 

                            Destes “estudos” nasceram entidades dispostas a rivalizar a disputa fundiária no país e a jogar combustível onde não existia fogo. Encontraram a faísca, de forma tão ou mais determinante do que aquela empregada pelo “herói” do filme “O Náufrago”.

 

                            Criada a faísca, a gasolina represada detonou grandes labaredas. Agropecuaristas e índios, que viviam em geral sob clima de paz, passaram a viver sob o terror da interrogação, para não dizer do medo.

 

                            Grande mobilização e disputas fundiárias. Propriedades invadidas. Tribos indígenas de várias etnias reclamando a posse de imóveis rurais, inflamados pela ortodoxia ideológica de alguns.    

 

                            Neste contexto de conflito, os poderes constituídos não poderiam se omitir. Analisando o fenômeno sob a ótica do Direito, a ordem natural das coisas, neste campo, acabou por relativizar o método de tripartição dos Poderes.

 

                            No mundo institucional politicamente correto o Executivo administra e aplica os impostos recolhidos para aplicá-los em prol do bem-estar da coletividade, ao passo que o Legislativo faz as leis e o Judiciário julga litígios.

 

                            Em algum momento desta aparente normalidade institucional surgiu um vácuo. E como não há vácuo de poder, naturalmente nasceu o que se passou a denominar de “judicialização da política”. Dito de forma mais simples: o Judiciário supostamente passou a atuar como legislador fosse, editando normas em abstrato.

 

                            Há algo de errado nisso? Poderia até haver, não fosse a necessidade de que alguma outra Instituição da República assumisse o buraco de poder, sob pena de que desse vácuo surgisse a anarquia total e absoluta.  

 

                            O caso das demarcações das terras indígenas é um dos exemplos mais emblemáticos desta nova formatação. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal foi acionado a julgar sobre a legalidade do processo de demarcação do caso “Raposa Serra do Sol”.

 

                             A Corte Máxima do país julgou improcedente a ação movida pelos proprietários, mas impôs algumas limitações. É certo dizer que o Supremo tentou racionalizar o uso inteligente da terra pelos índios. Para alguns, o Tribunal teria usurpado a competência do Legislativo ao estabelecer as condicionantes.

 

                            Este julgamento, que se restringiu apenas ao caso daquela terra em particular (sem efeito vinculante para outras situações concretas), lançou algumas luzes na medida em que instigou o Legislativo, em certa medida, a rever o método de demarcação de terras indígenas.

 

                            Por isso mesmo, seja para remediar a “guerra no campo”, seja para garantir a máxima constitucional de que os Poderes da República são harmônicos porém independentes entre si, é de máxima urgência que a proposta de emenda constitucional 215/2000 seja colocada em votação em regime de prioridade, ou por meio de algum outro instrumento legislativo que o valha.

 

 

                            A PEC em comento legitima e dá competência  ao Congresso Nacional, ao Parlamento brasileiro - e não à FUNAI (leia-se: o Executivo) -, para promover demarcações. Mas para isso é preciso vontade política.

 

                            Não é admissível que os proprietários rurais e o agronegócio brasileiro, responsáveis pela circulação de riquezas e pela exportação de 100 bilhões de reais nos últimos doze meses, segundo reportagem recente da Folha de São Paulo, fiquem escravos emocionais deste terrorismo ideológico, que agride o Direito e o ordenamento jurídico nacional.

 

                            Até lá, infelizmente, proprietários rurais deverão submeter-se a processos administrativos demarcatórios promovidos pela Funai. Não se quer aqui generalizar, mesmo porque, segundo Alexandre Dumas, “toda generalização é perigosa”. Mas deferir demarcações em sede administrativa à margem do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, é expediente com o qual a Constituição Federal não compactua.

 

                            É preciso acreditar obsessivamente no senso de justiça do homem, ocupante de qualquer cargo, seja de que escalão for. E, em última instância, acreditar no Poder Judiciário (tido como a “ultima trincheira do cidadão”), sob a inspiração da coragem, na crença firme de que, muitas vezes, com o perdão do trocadilho, judicializar é preciso.

 

Ricardo Trad Filho

Advogado civilista e membro da Comissão Nacional de Acesso à Justiça da Ordem dos Advogados do Brasil.

ricardo@ricardotradfilho.com.br

 FONTE: JORNAL ACRÍTICA - GRUPO FEITOSA