Artigo: Da questionável obrigatoriedade da matrícula no Registro Civil de Pessoas Jurídicas de empresas de radiodifusão e notícias
Por Sérgio Fernandes Martins
Confesso que jamais imaginei que vivenciaria no Brasil, sobretudo após a redemocratização, discussão tão virulenta sobre censura à imprensa como a que está acontecendo nestes dias.
Assumi a Corregedoria-Geral de Justiça de Mato Grosso do Sul para o biênio 2019/2020 em 30 de janeiro de 2019. Elaborei cronograma de correições judiciais e extrajudiciais que estou cumprindo à risca, indo pessoalmente a todas as 55 comarcas e 175 serventias do estado. Entre tantas questões com as quais tenho me deparado nesta experiência, resolvi pinçar uma delas para discutir, neste momento em que o País revive algo que parecia sepultado na promissora democracia brasileira que a Constituinte de 1988 nos legou.
Durante as primeiras inspeções realizadas nas serventias extrajudiciais, notei que nossos relatórios exigiam o registro de jornais e demais publicações periódicas, oficinas impressoras, empresas de radiodifusão que mantenham serviços de notícias, reportagens, comentários, debates e entrevistas, e as empresas que tenham por objeto o agenciamento de notícias, nos cartórios de Registro Civil das Pessoas Jurídicas, por força dos artigos 114 a 126 da Lei no 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos).
Acontece que a referida lei foi editada sob forte influência da Lei de Imprensa (Lei no 5.250/1967) e, em 30 de abril de 2009, por meio de decisão proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130 (ADPF 130/DF), o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a Lei de Imprensa – editada em período de exceção institucional – é totalmente incompatível com os valores e princípios abrigados na Constituição Federal de 1988, razão pela qual foi considerada não recepcionada pela referida ADPF.
Ainda assim, os resquícios do regime autoritário e da censura, materializados na chamada Lei de Imprensa, remanesceram no parágrafo único, do art. 114, no inciso II do art. 116, e no Capítulo III do Título III da Lei no 6.015/1973. Aliás, o texto em vigor da Lei no 6.015/1973 faz expressa referência à Lei de Imprensa, como se vê da redação do parágrafo único do art. 114: Art. 114. No Registro Civil de Pessoas Jurídicas serão inscritos: (Renumerado do art. 115 pela Lei no 6.216/1975).
Parágrafo único. No mesmo cartório será feito o registro dos jornais, periódicos, oficinas impressoras, empresas de radiodifusão e agências de notícias a que se refere o art. 8o da
Lei no 5.250/1967.
A fiscalização permanente que recaía sobre os veículos de comunicação à época do regime de exceção acabou sobrevivendo no art. 116 da Lei de Registros Públicos, o qual estabeleceu que em todos os cartórios deva existir o livro “B”, destinado às matrículas das oficinas impressoras, jornais periódicos, empresas de radiodifusão e agências de notícias.
No rol de informações e documentos que devem instruir as matrículas estão desde o título ou designação, os endereços, os proprietários, até todos os dados pessoais. Se propriedade de pessoa jurídica, deverá haver cópia do respectivo estatuto ou contrato social com detalhamentos de nomes e prova de nacionalidade de seus diretores, gerentes e sócios. As demais exigências giram em torno da verificação do local onde funcionam e da qualificação completa das pessoas naturais encarregadas de direção. A solicitação destas informações tem o escopo de evitar clandestinidades, a fim de tornar possível eventual censura prévia de informações.
Da análise dos artigos, percebe-se que tais disposições acabaram por reproduzir integralmente o previsto no art. 8o e seguintes da famigerada Lei de Imprensa, visando a censura e restrição da manifestação do pensamento e expressão jornalística, substrato último da obrigatoriedade do registro em cartório dos meios de comunicação, preceitos totalmente inconciliáveis com os princípios constitucionais democráticos, nos quais a imprensa é livre, assim como o é o pensamento.
A doutrina, por sua vez, avança no entendimento de que o Título III da Lei de Registros Públicos foi atingido pela decisão da ADPF 130/DF. Nesse sentido, a lição de André Gomes Netto, compartilhada por Martha El Debs: Mostra-se inquestionável que os artigos 122 a 126 têm sua razão material de existir sedimentada na Lei no 5.250/1967, revelando-se, na realidade, uma verdadeira parte sobejante desse último Diploma Legal e que já não teria significado autônomo na esteira do entendimento externado pelo próprio STF. Destarte, levando-se em consideração que a Lei no 6.015/1973 é anterior à Constituição Federal de 1988 (...) conclui-se que os artigos 122 a 126 da Lei no 6.015/1973 foram revogados tacitamente pela mudança de Constituição.
Não bastasse o entendimento doutrinário, há em tramitação no Senado Federal o Projeto de Lei no 722/2015, que pretende revogar o parágrafo único do art. 114, o inciso II do art. 116 e o Capítulo III do Título III da Lei no 6.015/1973.
Ora, tendo a Lei de Imprensa sido declarada, em sua integralidade, incongruente com a Constituição Federal de 1988, o mesmo tratamento deve ser estendido à Lei de Registros
Públicos no que se refere à obrigatoriedade de matrícula dos veículos de comunicação. Isso considerando que, além da referida norma tentar controlar os meios de comunicação, as
informações requeridas para a matrícula das mídias eram e continuam a ser depositadas nas juntas comerciais e/ou nos registros civis nas quais as empresas de comunicação são registradas para constituir-se formalmente.
É fato que jornais, periódicos, oficinas impressoras, agências de radiodifusão e de notícias que possuam personalidade jurídica ou configurem associações, sociedade ou fundação devem ser registrados na Junta Comercial ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, conforme o caso, nos termos do art. 45 do Código Civil, em que todos os dados necessários estarão arquivados por ocasião de sua constituição em pessoa jurídica, com o devido efeito da publicidade e de segurança jurídica.
Referidas informações são livres, públicas e transparentes, o que demonstra ser desnecessário que os veículos de comunicação matriculem-se também na forma do disposto no Capítulo III da Lei dos Registros Públicos.
Além de tratar-se de mais uma exigência burocrática inócua, a medida carrega consigo custo financeiro para as empresas ao obrigá-las a recolher os emolumentos da matrícula, fazendo-as arcar duplamente com as custas do, este sim, indispensável registro na Junta Comercial ou no Registro Civil das Pessoas Jurídicas.
Assim, conclui-se que não se sustenta a necessidade do registro de jornais, oficinas impressoras, empresas de radiodifusão e agências de notícias no livro “B” dos Serviços de Registro Civil das Pessoas Jurídicas, tendo em vista a não recepção da Lei de Imprensa pela Constituição de 1988, a qual, como visto, serviu de base ao estabelecido no parágrafo único do art. 114, no inciso II do art. 116 e no Capítulo III do Título III da Lei no 6.015/1973.
Por fim, é importante ressaltar que o entendimento explanado diz respeito apenas à necessidade de matrícula da empresa de comunicação no livro “B” dos Serviços de Registro Civil de Pessoas Jurídicas.
Esta matrícula não se confunde com o registro da pessoa jurídica (sociedade) proprietária ou responsável pelos veículos de comunicação social e oficinas impressoras, pois não se presta a conferir existência legal ou personalidade jurídica àquela sociedade, que, para tal fim, já deve ter seu registro efetivado na Junta Comercial, ao menos quando se tratar de sociedades limitadas (Ltda.) e sociedades anônimas (S.A.).
O registro de sociedade simples, associação ou fundação com a finalidade de aquisição de personalidade jurídica, de cunho constitutivo, mesmo que sejam jornais, revistas, oficinas
impressoras, empresas jornalísticas ou de radiodifusão, deve ser feito tão somente no livro “A” da serventia registral, conforme disposição do inciso I do art. 116 da Lei no 6.015/1973.
Diante de tais considerações entendi por bem suspender, no âmbito da Corregedoria-Geral de Mato Grosso do Sul, a determinação para que constasse nos relatórios de correições as anotações dando conta de que o cartório inspecionado não lavrou no livro “B” a matrícula das oficinas impressoras, jornais, periódicos, empresa de radiodifusão e agências de notícias.
Penso que estou dando assim modestíssima contribuição no sentido de melhorar ainda mais o ambiente para a prevalência do inciso IX do art. 5o da Constituição Federal de 1988, que veda toda e qualquer atitude que possa implicar em censura à imprensa.
Texto: Sérgio Fernandes Martins - Procurador de Justiça MS