CHEGA DE HERÓIS QUEREMOS OS CANALHAS
O heroísmo revolucionário está na moda. Ligamos
a TV, lemos jornais e revistas, ouvimos rádio,
recebemos mensagens pela internet: o assunto
monotemático é a efeméride dos “50 Anos do Golpe Militar
de 64”. O blá-blá-blá é exaustivo. Cansa. O revisionismo
histórico está tentando determinar por ora quem era
Deus e o diabo na terra do sol. Torturados e torturadores
(e seus respectivos defensores) expõem suas razões e
emoções como se fossem chagas a serem curadas pela
expiação de uns e o cultivo da memória culpabilizante
de outros.
Toda a vez que vejo um militante da esquerda de salão
contando suas agruras, de como foram esmigalhados nas
mãos de seus carrascos nas masmorras de 64, 68 e 73,
observo que o entrevistador deixa de fazer a pergunta
fundamental: e aí, depois de torturado, você dedurou seus
companheiros? Você contou tudo? Entregou o ouro para
o bandido? Então fica assim: como não há a abordagem
desta “questão”, ficamos sabendo as coisas pela metade.
Diante disso, nós poderíamos imaginar o seguinte:
quem não abriu o bico, segurou a pontas, urrou no pau-
-de-arara caladinho certamente não viveu para contar a
história. Aqueles que não suportaram a dor e o opróbio e
deram as informações para seus algozes devem até hoje
se sentir culpados pelas mortes e prisões de inúmeros militantes
escondidos nos aparelhos de resistência, devendo
carregar sentimentos dolorosos nas costas. Essa é a vida.
Por isso acho que o heroísmo imaginário muitas vezes
tem o condão de purgar a consciência pesada. Muitos
sobreviventes daquele período se sentem como os protagonistas
do lado correto da história. A disputa agora é
para impor a versão de fatos cuja complexidade deverá
ser devidamente elucidada só nos próximos 50 anos.
Por ora, o campo de batalha são os resquícios da
guerra fria. O Brasil se esforça, mas ainda é campo fértil
para o cultivo de ideias retroativas. Reclamam muito de
64. De fato, o legado social e econômico deixado é o nosso
caos cotidiano. Mas quem olha um pouquinho para trás
deve observar que a ditadura de Getúlio – sob os cuidados
de Filinto Müller (um herói pra muita gente daqui) - foi
muito mais sanguinária, estúpida e selvagem, embora
ninguém comente com clareza esse assunto. Vargas é
hoje quase um santo, graças ao populismo de massa que
implementou nos anos 50.
Os canalhas no Brasil muitas vezes são redimidos pela
história, sobretudo nas narrativas de longo prazo. Veja
o caso de Lula – um contumaz dedo-duro da ditadura,
responsável pela entrega de serviços valiosos ao delegado
Romeu Tuma, principalmente quando se queria detonar
adversários sindicais – e avalie como ele tem se saído
bem, glorificado por idiotas, cada vez mais rico e poderoso
depois do imbróglio ditatorial.
Veja também o caso do coronel Paulo Malhães – o psicopata
que dias atrás contou tranquilamente na Comissão
da Verdade que torturou, matou e esquartejou imensa
quantidade de militantes de oposição– e perceba como
ele apenas revelou a ponta do iceberg. Seu depoimento
embrulhou nosso estômago. Mas há centenas de Malhões
soltos por aí, uns mais sutis outros mais grotescos, mas
todos (à esquerda e à direita) responsáveis pelos desdobramentos
políticos e sociais advindos nas décadas
seguintes.
O coronel sabe, porém, que é intocável (como o nosso
Lula). Ele tem a consciência do dever cumprido (como
Lula). Caso se altere a Lei da Anistia, é provável que os
trâmites do processo levem muito tempo para ser elucidados
e julgados nos seus mínimos detalhes. Ou seja: as
mãos da Justiça só alcançarão os canalhas quando eles
estiverem a sete palmos sob o chão.
DANTE FILHO
jornalistas e escritor (dantefilho@terra.com.br)